Resenha de live – “A Situação de Mães e Gestantes durante a Pandemia: uma abordagem antropológica”

No dia 08 de Maio de 2020 aconteceu a live “A Situação de Mães e Gestantes durante a Pandemia: uma abordagem antropológica”. Contou com a participação da mestranda Caroline Dal’Orto e da doutoranda Maria Santana, ambas discentes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA e pesquisadoras do Grupo de Estudos Feministas em Política e Educação (GIRA). A live fez parte da Marcha Virtual pela Ciência convocada pela SBPC. Apresento aqui os diferentes momentos da live, descrevendo os argumentos principais apresentados pelas pesquisadoras. Pelo que percebi, a live foi dividida em três momentos: 1) Um quadro geral sobre Estudos de Gênero, e Teorias e Antropologias Feministas, como foco nas Epistemologias Feministas e nos estudos sobre Reprodução nas Ciências Humanas, 2) Um momento de explanação da situação de gestantes e como funciona a maternagem no Brasil, bem como ela é interpretada nas Ciências e 3) o que se passa com gestantes e parturientes nesse momento de pandemia. No início da live foram retomadas as principais ações que as Ciências Humanas brasileiras tem feito nesse momento de pandemia e as apresentadoras deram especial ênfase ao Boletim Ciências Sociais e Coronavírus publicado pela ANPOCS com as principais associações científicas de antropologia, ciência política e sociologia do país. Apontaram que esse momento político que vive o Brasil, agravado pela pandemia, é de desestabilização das instituições científicas e que nessa crise é fundamental ressaltar a importância das Ciências Humanas, particularmente nos temas da Saúde e, em específico, da Saúde das Mulheres. Apontaram que de seus lugares de antropólogas, suas maiores contribuições partem dos campos da Antropologia do Corpo, Antropologia da Ciência e Antropologia da Mulher. Caroline, que é filósofa de formação, iniciou sua fala apontando que a academia também tem o seu obscurantismo, particularmente relacionado com a construção do Homem (escrevo propositadamente com H maiúsculo) como um universal. Mas antes de adensar nessa reflexão aponta que seu objetivo é refletir sobre o que a Epistemologia tem a ver com ciência e particularmente com as mulheres. Maria então sugere que apesar de estarmos em um momento de isolamento físico, que as tecnologias possibilitam que esse não seja um isolamento social e que é um momento importante para a difusão científica, onde podemos repassar o conhecimento que produzimos de forma traduzida para públicos mais amplos. Que se nossa sociedade associa o feminismo exclusivamente às suas dimensões político-ideológicas, é o papel das teóricas feministas apresentar o acúmulo das teorias feministas nos diversos campos do saber. Caroline apresenta que a Epistemologia é uma teoria do conhecimento e que a filosofia, sua área de formação, é uma teoria das ideias. Para Caroline, a grande contibuição das Epistemologias Feministas é denunciar que toda ciência é produzida a partir de uma posição e que esta posição é masculina. Cita um texto de 2019 da historiadora da ciência Londa Schiebinger, onde ela analisa uma situação em que mulheres começaram a morrer em decorrência do uso de um determinado medicamento e que, quando foram à fundo na questão, descobriram que todos os voluntários de teste desse medicamento foram homens. Então, para Caroline, a Epistemologia Feminista é o campo que se pergunta, nesse caso específico, porque a maioria dos voluntários eram homens. E ela responde dizendo que é em razão de um pressuposto universal onde a humanidade carrega o Homem como um universal. Questionando essa universalidade ela então ilustra a resistência a esse movimento afirmando que não é a toa que as mulheres são as maiores protagonistas nos estudos sobre a violência contra a mulher. Nesse momento Caroline passa a dialogar com Maria e trazem para o debate as reflexões de Silvia Federici sobre a Reprodução. Apontam que quando pensamos em reprodução a primeira coisa que vem à mente é a reprodução biológica em si e que, do ponto de vista das teorias feministas, é necessário o alargamento dessa categoria. Então, propõem entender a reprodução também a partir da dimensão do cuidado, afirmando que o  trabalho do cuidado é majoritariamente feminino e traz em si diversas dimensões, como a relação com natureza, com a agricultura, o próprio cuidado com família, dos idosos e que tudo isso envolve o que as teóricas feministas chamam de reprodução e que a reprodução, em última instância, é uma economia dos cuidados. Maria aponta que isso envolve diretamente a vida das mulheres que fazem esses trabalhos e que nossa sociedade deve passar a valorizar o trabalho doméstico. Nesse momento deflagra-se a consigna dos movimentos feministas de que o pessoal é político, ao passo que Caroline chama a atenção para uma citação de Federici que tem tudo a ver com a discussão de que “o que vocês chamam de amor eu chamo de trabalho não pago”. Nesse momento trazem uma outra autora, a Gayle Rubin, que faz críticas ferrenhas às teorias marxistas clássicas. Essas críticas, segundo elas, surgem do fato de Marx pensar questões como  “o trabalhador ganha o mínimo para a sua sobreviência”, não levando em conta todo o trabalho não remunerado realizado maioritariamente pelas mulheres. Trazem o exemplo dos Manuscritos Econômicos- Filosóficos onde o autor afirma que “as relações entre mulheres e homens são as mais naturais dentre humanos”, o que, para as apresentadoras da Live essencializa a relação entre homens e mulheres, sem historicizá-la. Surge portanto a dicotomia entre o público e o privado que nada mais é do que a naturalização do trabalho não-remunerado da mulher. Citam então um exemplo didático, dizendo que “o homem compra um lençol, mas quem lava esse lençol?”. Portanto, para as apresentadoras, Marx era um corpo localizado historicamente e socialmente e como tal reproduziu valores de sua época em seu pensamento. Voltando ao presente, apresentam dados alarmantes sobre a situação das mulheres no Brasil, por exemplo, de que 35% das mortes de mulheres é em razão do feminicídio e que 88% dos responsáveis pelos feminicídios são companheiros afetivos das vítimas. Tecendo uma ligação entre a introdução teórica, os dados sobra a situação de violência contra as mulheres no Brasil e a pandemia, apontam que quando começamos a viver a pandemia, entendemos que a maior medida de prevenção é o isolamento, o que faz com que não apenas as antropólogas feministas, mas toda a sociedade, desloquem seus olhares cada vez mais para o privado. E esse privado, entendido como um espaço de violência e de trabalho para as mulheres, sendo que o período de quarentena é infla essas relações. Assim, para Maria, a casa, durante a quarentena, amplifica as relações de violência e trabalho que já existiam em nossas sociedades. Então, desde março, mulheres começam a reclamar da sobrecarga de trabalho. Aprendemos que o espaço da casa não é um espaço seguro para as mulheres durante a pandemia e que ao invés de um espaço de salvaguarda, para muitas mulheres a casa se torna um lugar de violência extrema e exaustão física. Trazem para o debate alguns dados, como uma pesquisa da UFBA que afirma a possibilidade de 15 milhões a mais de casos de violência doméstica a cada 3 meses de quarentena. Especificamente sobre reprodução, apontaram que 98% dos partos são em instituições de saúde e que acontecem de maneira violenta, como uma política de estado. Segundo Maria, os países onde os índices de saúde das mulheres são mais altos, é onde o parto saiu do modelo exclusivo da obstetrícia médica. Tanto Maria como Caroline apontam que o parto não é e não pode ser visto como uma doença, o que implica que uma intervenção só é necessária em casos de complicações, mas que no Brasil não é esse o caso, sendo nosso país campeão do mundo em cesárias. E esse índice, segundo Maria, tem crescido durante a pandemia e que muitas mulheres tem procurado a cesária nesse momento. E isso soa estranho, mas em sintonia com o que a literatura tem demonstrado. Por exemplo, em estudo da Fiocruz de 2012, apenas 28% iniciam o pré-natal querendo realizar uma cesária, mas que em determinados hospitais esse índice chega a 90% dos partos realizados. Desta forma, Maria levanta a hipótese de que as mulheres são convencidas e desencorajadas ao parto normal ao longo da gestação, citando o fato de que os médicos usam o medo e a violência para convencê-las. Assim, as apresentadoras apontam que a quarentena tem um impacto direto na vida das mulheres. Outro ponto que afirmaram durante a Live foi a sobrecarga com os filhos na quarentena, tema que surgiu a partir da intervenção de uma pessoa da audiência. As apresentadoras responderam dizendo que durante a quarentena há uma sobrecarga maior de trabalho para as mulheres, que tem que manejar uma série de tarefas dentro de casa. A mulher se torna “várias coisas ao mesmo tempo” para dar conta de estar com os filhos dentro de casa. Passando para a parte final da live, em que Maria conta sobre sua pesquisa sobre gestação e novo coronavírus, a antropóloga se questiona: como fazer pesquisa e etnografia sem poder estar com as pessoas? Para Maria, a etnografia é conviver com pessoas, olhar no olho, se relacionar, compartilhar… Ou seja, não tem como fazer antropologia sem pensar estratégias para isso. Segundo ela, o início da pandemia coincidiu com o início do trabalho de campo que faria em uma grande Maternidade baiana, ao que foi informada da necessidade do isolamento e de interromper seu campo. Na maternidade Maria buscaria estudar as práticas de cuidado da equipe de obstetrícia: como os residentes aprendem a fazer um parto, a cuidar da mulher ou do homem trans e de todos os corpos que estão parindo. Entretanto, ao não poder continuar e como faz parte de redes de gestantes e parturientes, percebeu logo de início que suas amigas próximas gestantes se perguntavam sobre como vão parir nesse momento de pandemia e se haveriam riscos específicos. Só que esse debate não estava na ordem do dia e, como contou na Live, começou a ler artigos sobre gravidez e covid-19 e preparou um questionário online para chegar nas mulheres gestantes. Compartilhou o questionário nas redes sociais e obteve 250 respondentes, das quais todas exceto uma era gestantes, sendo a exceção uma puérpera (que são mulheres que acabaram de parir, até 42 dias pós-parto). Segundo Maria, foi a Antropologia que a convidou a ouvir essas mulheres, pensando a saúde não apenas a partir da biomedicina, mas produzir um conhecimento a partir do olhar das pessoas, que tem as suas formas de ver e pensar esse momento. Assim surgiu a pesquisa “Gestação, Parto e COVID-19”. Dentre os principais resultados que Maria apresentou durante a live, ela mostrou que no início da pandemia as gestantes começaram a ser testadas e, com medo, passaram a refletir sobre a possibilidade de parir em casa. Entretanto, no Brasil, essa ideia de “parir em casa” é ainda de camadas médias, não sendo um projeto para as mulheres de camadas populares. Mas, para todas elas, o hospital se tornou um lugar inseguro, lócus de uma possível contaminação de si mesmas ou de seus bebês. Além disso, sustentando a posição de Maria de que a pandemia é um cenário muito ruim para as mulheres em relação aos direitos sexuais e reprodutivos, ela demonstra que as gestantes não têm conseguido acessar os serviços pois estão interrompidos. Dentre esses serviços aqueles de planejamento familiar. Então muitas mulheres não tem tido acesso a anticoncepcionais, preservativos e mesmo a implantação de DIUs. Ao mesmo tempo que há essa interrupção, como nos narra Maria, a recomendação é que as mulheres não engravidem nesse período pois não existem pesquisas específicas sobre como o vírus age sobre as gestantes e sobre os fetos. E isso tudo ocorre em uma situação onde já existem casos de morte materna relacionadas ao coronavírus. A projeção estatística é que 47 milhões de mulheres fiquem sem contraceptivos durante a pandemia, o que indica um acréscimo de 7 milhões de gravidezes não planejadas e não desejadas e que sem o direito ao aborto legal, os direitos de escolha das mulheres no Brasil durante a pandemia estão comprometidos. Especificamente sobre o aborto legal, Maria narra que em dois estados, São Paulo e Paraná, as alas que oferecem o abortamento legal foram desativadas para que os leitos tratem de pacientes de covid-19. Entretanto, em São Paulo, o serviço foi reativado por pressão do ministério público, defensoria e movimentos sociais feministas. No Paraná as mulheres foram orientadas a usar o hospital geral o que, segundo Maria, expõe ainda mais as mulheres ao risco. Com o término do tempo ambas as apresentadoras, Caroline e Maria se despediram e se deu por encerrada a live. 

Felipe Bruno Martins Fernandes (São Félix, 09 de Maio de 2020)

 

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