“Ideologia de gênero” – Contra o sequestro do secularismo e o ataque à cidadania.
O propalado combate a chamada “ideologia de gênero”, que avançou, de início, pelas mãos católicas da CNBB e, abraçado agora por outros setores retrógrados do pensamento religioso começa a ganhar sorrateiramente as casas legislativas de diversos municípios e estados brasileiros. Sob a pressão religiosa, Câmaras Municipais, como a de Mossoró-RN, Cuiabá-MT e Estados como Paraíba, Pernambuco, Espírito Santo, Paraná e Distrito Federal retiraram dos Planos Municipais e Estaduais de Educação a discussão sobre as relações de gênero e diversidade sexual na escola com o pretexto do velho e surrado “argumento” de que tais questões representam, na verdade, uma tentativa de “destruição” da família tradicional por meio de um doutrinamento ideológico maléfico e antinatural, o qual, afirmam, deturparia os verdadeiros e naturais conceitos de homem, mulher, família e sexualidade.
Quando as casas legislativas se negam a discutir publicamente e decidem, por má fé, insensatez e pressão, ignorar a natureza secular das pesquisas científicas sobre gênero e sexualidade são elas, as casas legislativas e os defensores da posição anti-“ideologia de gênero”, a agirem de fato ideologicamente. Nada é mais definidor do fenômeno “ideologia” do que sua função de manutenção e legitimação das formas de pensamento, valores e ideias vigentes e dominantes sob disfarces e artifícios que tentam mascarar sua verdadeira realidade e fundamento. A ideologia não faz outra coisa senão revestir com uma falsa aura de naturalização e divinização o que é, com efeito, produto da ação e do pensamento humano em sociedade. Isto é, as ideias e representações humanas deixam o seu verdadeiro solo, ou seja, o solo da história e da atividade humana, para ganhar os reinos da natureza e do divino, de modo a se imporem enquanto um poder simbólico socialmente aceito e não percebido como tal pelas pessoas.
A ideologia deseja a aceitação da realidade sem questionamento. Portanto, “ideologia de gênero” é exatamente o que esses setores fundamentalistas querem preservar. São eles e suas ideias o ideológico, pois ambicionam manter e forçar uma representação cultural fixa sobre as diferenças e expectativas de comportamento entre homens e mulheres baseadas no sexo dos indivíduos. Representação ideológica, cientificamente equivocada e politicamente excludente e opressora sobre as formas plurais de se viver o gênero e os prazeres do corpo.
Os discursos que afirmam que a construção e as expressões da masculinidade, da feminilidade e da sexualidade são variáveis e plurais no tempo e espaço, conforme classe social, religião, etnia, região, culturas, não são discursos de “ideologia do gênero”. São discursos científicos. Os discursos que denunciam e combatem as desigualdades e a violência de gênero, as consequências dos masculinismos na vida de mulheres e homens e a heteronormatividade e homofobia também não são, de modo algum, “ideologia do gênero”. São discursos críticos e políticos na defesa de valores éticos e na efetivação de direitos. Em vez de ideologia, são, na verdade, o trabalho de “desideologização” do arbitrário cultural que instituiu e naturalizou, por tanto tempo em nossas sociedades, convenções normativas e de poder que fisgam e submetem, desde a mais tenra idade, os corpos humanos para aceitarem uma concepção homogênea e naturalizante de gênero e sexualidade, a qual baseia-se na crença da existência natural de uma coerência e continuidade linear, definida por Deus ou pela natureza, entre o sexo anatômico das pessoas e o desejo e o comportamento que elas devem assumir em suas vidas e corpos.
Políticos, padres e pastores optam, de maneira inadvertida e deliberada, por desconsiderar a seriedade científica dos estudos de gênero e sexualidade, e, com isso, negar a própria constatação da diversidade humana. O que centenas de pesquisas científicas conduzidas nas áreas de psicologia, psicanálise, sociologia, antropologia e história cultural apontam sistematicamente é a existência da diversidade de formas de arranjos sociais nas relações de gênero e sexualidade, sejam elas na nossa sociedade sejam em outras culturas. Isso é um fato, um dado da realidade humana independente de crenças políticas e religiosas e possível de ser constatado por quem quer que se disponha a estudar e pesquisar por conta própria.
Essas pesquisas não se pautam em coleiras ideológicas e políticas à revelia da realidade das práticas e relações humanas, mas se apoiam sim, sob as regras da produção do conhecimento científico, em registros empíricos da pluralidade de comportamentos, hábitos e formas de vida, assim como na reflexão e discussão conceitual apurada a esse respeito. Negar o acesso nas escolas e salas de aula a esse patrimônio científico acumulado, e, reconhecido por diferentes comunidades de especialistas ao redor do mundo, significa voltar a agrilhoar as mentes às cadeias da ignorância e do obscurantismo do senso comum e dos preconceitos sociais, aceitos sem questionamento, sem observação metódica e reflexão racional.
Por mais que não exista respaldo jurídico para essas medidas que tentam silenciar a discussão das questões de gênero e sexualidade nas escolas, estamos diante de um duro ataque a um dos pilares civilizatórios, que, entre outros fatores e contribuições, permitiu o enorme avanço do conhecimento científico dos últimos séculos, qual seja: o secularismo. Trata-se de um ataque ao secularismo e ao pensamento racional, seja ele de caráter científico, filosófico e, também, religioso. Mais ainda: é um ataque à cidadania, pois se almeja-se recusar ao jovem o acesso ao conhecimento sobre o conteúdo do pluralismo cultural, que é um elemento constitutivo da sociedade da qual ele faz parte, dificultando, assim, sua compreensão e posicionamento numa sociedade cada vez mais diversa. Nesse sentido, portanto, ataca-se os fundamentos asseguradores da convivência democrática e solidária numa sociedade multicultural como a nossa: a tolerância, o reconhecimento, o respeito às diferenças, a liberdade de expressão, a discussão e o combate às desigualdades de todos os tipos.
Ao tentar eliminar das orientações educacionais a valorização e respeito à diversidade sexual e a superação das desigualdades de gêneros, as assembleias legislativas brasileiras estão seguindo na contramão da história. Mesmo países historicamente bastantes influenciados pelo pensamento religioso, como os EUA, avançam em matéria de ampliação da cidadania por meio do reconhecimento das especificidades sociais e culturais das minorias e grupos estigmatizados na sociedade, reforçando e garantindo a efetivação dos seus direitos de expressão e autonomia erótica e identitária. A Suprema Corte dos EUA, aliás, acaba de aprovar o casamento entre homossexuais em todo o país. Entretanto, o que temos assistido no Brasil é uma reação ofensiva cada vez mais organizada contra o reconhecimento das violências e injustiças sociais que cotidianamente segmentos da sociedade, como as mulheres e os homossexuais, padecem. O protagonismo civilizatório do STF brasileiro, que, nos últimos anos, nas questões de gênero e sexualidade pautou-se pela universalização dos direitos a esses segmentos historicamente violentados e marginalizados, tem de se estender para as casas legislativas de todo o Brasil.
Em um momento crucial, em que o país se debate duramente acerca de como avançar na educação, campanhas e ações que tentam confundir a população com a falsa ideia da “ideologia do gênero”, quando se trata, com efeito, de promover nas escolas a discussão e o conhecimento das diversidades humanas, podem resultar em duas graves consequências no ambiente escolar e seu cotidiano: 1) maior vulnerabilização dos professores e de sua atividade docente, expondo-os a mais ingerências, controles e censuras por parte de coordenações, pais, alunos. Não será absurdo, pois já ocorre, quando demissões e constrangimentos de professores passarem a ocorrer sob a acusação de “assédio ideológico” e doutrinamento da “ideologia do gênero”. 2) Reforçar as formas de discriminação e desvalorização já existentes nas escolas e que produzem sofrimentos e prejudicam perversamente o rendimento e o trajeto escolar de muitas crianças, abafando ainda mais a dor e as experiências de desrespeito e violência de meninas, travestis, trans, meninos e meninas homossexuais na escola.
Nesse sentido, não é aceitável a passividade reinante nas esferas política, jornalística e jurídica do país diante da escalada de ofensivas contra o secularismo, a cidadania, a liberdade de expressão e pensamento e contra as minorias. A Carta Potiguar batalha por uma esfera pública crítica, racional e atuante no debate público de ideias e valores. Tem sido esse o nosso maior ideal e projeto.
Para surpresa de muitos, até agora foi na esfera econômica que assistimos a resposta mais contundente em defesa do secularismo e do pluralismo cultural. A campanha publicitária da Boticário veio acompanhada de outras campanhas paralelas em defesa da legitimidade de modalidades plurais de práticas amorosas e de famílias. É preciso mais, bem mais. A sociedade brasileira possui instituições e grupos sérios e comprometidos com os ideais republicanos e iluministas, de modo que não podemos ficar calados diante de tal descalabro obscurantista e deseducador. São nossas liberdades, de expressão, de pensamento, erótica e identitária, duramente conquistadas na história recente e ainda não inteiramente consolidadas, que estão em jogo. Portanto, defendamos uma educação para a igualdade e para o reconhecimento e respeito da diversidade.
Fonte: Carta Potiguar – http://www.cartapotiguar.com.br/2015/06/26/ideologia-de-genero-contra-o-sequestro-do-secularismo-e-o-ataque-a-cidadania/