Minhas boas lembranças e as dificuldades do presente

Encerra 2019. Me veio a lembrança o ano de 1979, quando iniciei a minha militância política, era adolescente… Me lembro do entusiasmo com que ia as manifestações pela anistia e contra a ditadura. A época era do governo de Figueiredo, quando muitos de nós lutávamos pela Lei da Anistia, quando os presos políticos ganhariam liberdade e os exilados puderam retornar ao país, mas deixando um claro sinal de que os militares não admitiriam qualquer tentativa de punição legal às Forças Armadas – e assim continua. Passei a fazer parte dos quadros do partido clandestino “Movimento de Emancipação do Proletariado” (MEP), de orientação marxista-leninista. Nessa época morava em Salvador, e aqui o MEP tinha suas diferenças com o MEP do centro político do país (SP, RJ e MG). Vivíamos, a contragosto da turma do sul, numa relação promíscua com o movimento anarquista de Salvador, o “Inimigo do Rei”, um grupo muito atuante e influente. Se líamos Marx, entrava também no rol das nossas leituras Bakunin, Malatesta e principalmente Proudhon com sua Filosofia da Miséria. Isso nos permitia questionar o que afinal era o tal centralismo democrático, princípio leninista norteador das ações do partido. Isso nunca foi tranquilo para o pequeno grupo composto pelo MEP em Salvador.
Certo dia fui convidada a ir a Aracajú para assistir o encontro entre artistas e intelectuais que estavam no centro de uma discussão provocada pelo cineastra Cacá Diegues, quando fez referência a existência de uma “Patrulha ideológica” contra a turma “Odara”. Estiveram presentes no evento, Gilberto Gil, Gabeira, Henfil, Ziraldo, Doc Comparato, entre outros. Lá fui eu a Aracaju, vestida com camiseta estampada de Che. Aproveitamos, eu e um amigo, para vender o jornal “Companheiro” na cidade e encontrar com alguns “companheiros”.
No primeiro dia do evento fui apresentada a Gil, que estava hospedado na casa do meu cunhado, um dos organizadores do evento. Muito simpático, Gil ao me ver vestida com uma camiseta estampada de Che, me disse: “ora, o superstar da esquerda”! Eu rebati: “é uma estrela revolucionária”! Até aí tudo bem. Fui assistir o debate com alguns dos convidados, entre eles, Gilberto Gil. Sentei na escala, bem ao lado de Gabeira, que participaria do debate no dia seguinte. Lá pelas tantas, ouço Gil, do palco, fazer a seguinte afirmação sobre a cultura indígena: “já está aculturada, e isso faz parte” (e seguiu) … enfim, fiquei indignada. Disse ao Gabeira: “prefiro Gil com o violão na mão”! Ele riu, e concordou comigo. À noite, liguei para meu cunhado e desabafei: – “estou decepcionada com Gil sobre o que ele falou da cultura indígena”. Ele disse: “ele está aqui do meu lado, fale com ele”. Eu recusei, mas pedi que passasse o recado. No outro dia, estava Gil no palco. Quando terminou sua fala, ele gritou do palco: “eu sei que tem alguém aqui na plateia decepcionado comigo, mas vamos conversar”. E de lá do palco, me localizou. Desceu e não pudemos conversar, mas me convidou para ir na festa de encerramento do evento. Nessa festa conheci Henfil, que passou apenas para despedir dos amigos. Um pouco depois me sentei ao lado de um grupo musical de Aracaju, me entregaram um instrumento musical chamado xequerê. Gostei e comecei a tocar. Logo depois, chega Gilberto Gil, veio na minha direção, se ajoelhou e me deu um beijo nos pés. Não disse nada, nem ele.
Antes de voltar à Salvador, eu e meu amigo fomos ao encontro de uma ex liderança do “Partido Comunista” (PC) de Sergipe, que estava querendo se enfileirar no MEP. Conversamos e entregamos o jornal “Companheiro”. Nunca soube do resultado dessa conversa. Voltamos à Salvador.
Pouco tempo depois fui embora de Salvador para morar em Beagá, carregada de dúvidas e perguntas. Em Beagá, entrei em contato com o MEP, e percebi que ali a coisa era bem diferente, era do tipo sério, um amontoado de disciplinas e princípios ortodoxos orientavam a conduta dos militantes. Conheci os chamados “peixões” e “peixinhos”. Até então eu era apenas uma visitante do nordeste participando de algumas reuniões e acreditando que faríamos a revolução. Um dia, solicitaram a minha casa como local para reuniões, que se tornou o lugar para guardar material clandestino – quem ia desconfiar de uma adolescente que mal conhecia os princípios marxista-leninista? Aí, percebi que tinha de fato me tornado parte do grupo, pelo menos era confiável. Mas tudo isso durou pouco. Em minha companhia, andava um dos membros classificado como “peixinho”, era o único que eu conversava sobre as minhas dúvidas e críticas, e isso me aproximou dele. E nos tornamos mais do que amigos de partido. Certo dia tive coragem, em uma das reuniões, de expressar a minha crítica sobre o “centralismo democrático” , de que se tratava de uma estrutura burocratizante, onde as decisões eram tomadas verticalmente, por uma vanquarda, que não era capaz de ouvir as vozes de baixo. Não combina com a vontade libertária… Como era de se esperar, me criticaram e me indicaram uma lista de livros para ler. Lá fui eu, muitas noites de leituras entender o centralismo democrático e outras coisas mais. A cada leitura aumentava a minha sensação de estranhamento.
Tive notícia que ia chegar um desses “peixões” do MEP , vindo do Rio de Janeiro, para organizar a entrada do MEP em um novo partido: Partido dos Trabalhadores (fundado em fevereiro de 1980), que surgiu dos movimentos sindicais e intelectuais de esquerda, com uma proposta anti-stalinista e na defesa do socialismo democrático. Fui apresentada ao tal “peixão” e dias depois estava dormindo com ele. Era um “peixão” bem vulnerável. Sabendo da minha “amizade” com o tal “peixinho”, ele veio me passar um sermão: “meu comportamento estava causando problemas interno no partido”. Ou seja, tinha que me “enquadrar” na disciplina, não podia sair aí flertando com os companheiros. Bem, disse a ele: “não vou me enquadrar em nada, a bem da verdade, não me dou bem com partido, são regras demais, não combina comigo”. E daí em diante me afastei do MEP, que pouco tempo depois passou a ser parte do PT. Lembro de ter ido a um encontro de Mulheres do PT (fui convidada), o primeiro em Minas, lá me colocaram como representante estudantil, apesar de não ser filiada. Na época estudava filosofia na FAFICH/UFMG, no prédio do bairro Santo Antônio. Nesse encontro conheci a Marisa, mulher da principal liderança do novo partido (e continua sendo…), o Lula.
Nas idas e vindas entre Minas e Bahia, me casei com o tal “peixinho”, que me convidou para participar das reuniões do PT na sua cidade. Achei tudo inovador, as regras não me pareceram ser mais importantes, mas os debates com as lideranças locais e moradores. Os consensos eram formados depois de muita discussão, tudo parecia bem diferente do MEP – nada de “peixões” e “peixinhos”. Era o tal partido de base. Não me filiei, mas gostei de participar das reuniões. Dei contribuições ao jornalzinho do PT local. Publiquei o meu primeiro artigo nele. No artigo, denunciei as “amarras’ que estavam acontecendo entre o novo partido e os sindicatos. Defendia a autonomia política dos sindicatos, sem vínculo orgânico com partidos. A maioria dos membros do PT local, concordava com isso, e nessa cidade tinha muitos sindicalistas (muitos trabalhando em São José dos Campos, voltavam sempre a cidade mineira). E assim segui apoiando o PT, inclusive nos momentos eleitorais.
Depois de anos de ditadura, estávamos fazendo política de base, com trabalhadores, trabalhadoras, lideranças… Estávamos construindo a democracia no país depois de tantos anos de ditadura. Estávamos nos programando para a transformação radical, rumo ao socialismo democrático. Foram bons tempos, cheios de esperança e boas crenças. Continuava a minha militância política, sem muito vínculo com o partido, apesar de minha participação e contribuição nos encontros locais. Mas acreditando de que mudaríamos a política desse país.
Muitos anos se passaram, de 1979 a 2019 muita coisa mudou. O PT chegou ao poder, governou quase 14 anos, e ouvi de uma de suas principais lideranças: “o PT não prometeu fazer revolução, mas reformas”! Tudo bem, estava certo! Já não era mais o partido de base, era o partido do poder.
Durante esses anos de governo petista vivi um movimento de ondulação. Ora aplaudindo as conquistas sociais (bolsa família, cotas raciais, conquista dos novos direitos, criação de novas universidades no nordeste, entre outras políticas democratizantes)… Ora revoltada com os contrassensos (política de conciliação com a elite, Usina de Belo Monte, Lei antiterrorismo, entre outras).
Hoje, ficou o descrédito, o balanço que faço não é animador. O PT não conseguiu capitalizar a insatisfação generalizada com a política e o sistema econômico (vide junho de 2013, que foi avaliado como um movimento da direita para derrubar o governo petista). A atual crise política tem mostrado que a democracia tem se tornado nada mais do que um jogo de negócios, um espaço de competidores eleitorais, deixando em curso, sem nenhum risco e irretocável, o neoliberalismo. Enquanto a democracia escorrega ralo abaixo, as lideranças políticas estão preocupadas com as estratégias eleitorais, “concentrando alto grau de atenção sobre si”. Todo o legado que ficou nos ensinou que a democracia nada mais é do que um método para a tomada de decisões políticas, no qual os líderes políticos adquirem o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor, confirmando Schumpeter. Portanto, sem ilusões, a democracia durante esse tempo sempre esteve no elemento competitivo, a vida política foi/é das lutas entre os líderes rivais, organizados em partidos, correndo atrás dos votos dos/as cidadãos/ãs eleitores/as. Ou seja, longe de ser um arranjo institucional de espaços públicos de decisões populares. O único espaço público é do mercado, aumentando o número de consumidores, promovendo a inclusão do pobre enquanto pobre, com direito a crédito e muitas dívidas. O debate público sobre as realidades sociais, a legitimidade das discussões, a luta por uma outra cultura política, tudo isso deixou de ter importância.
Como disse Francisco Oliveira: a relação entre classes, interesses e representação foi para o espaço. A possibilidade de formação de consensos tornou-se uma quimera, mas isso não é o anúncio do dissenso e muito menos gera política. A democracia que acreditamos construir nesse país, nem mesmo chegou às periferias, foi seletiva e elitista. Basta ver as estatísticas sobre o número de jovens negros e pobres assassinados, o crescimento da população carcerária e a extrema violência contra grupos vulneráveis e oprimidos (como mulheres, indígenas e LGBT), durante todos esses anos.
O que temos visto é a robustez do neoliberalismo revelado na sua capacidade de desorganizar o mundo do trabalho (reforma trabalhista, terceirização do trabalho, reforma da previdência) e mercantilizar os espaços da vida.
O PT não tem conseguido dar respostas à crise que se instalou no país. Não consegue romper com a estrutura do poder da qual passou a fazer parte. Não fez a reforma política, (só para lembrar: a eleição após o impeachment da presidenta Dilma, o PT fez alianças, em várias cidades, com partidos que participaram do “golpe”).
Me lembro de uma entrevista de Antônio Negri, quando esteve no Brasil, se referindo ao PT: “interpretaram tudo em termos de equilíbrio governamental e parlamentar, quando perderam a oportunidade de relançar uma ação à esquerda e renovar o próprio partido, pois reprimiram as lutas de 2013”. E continuam, digo eu, sem entender o que foi junho de 2013. Basta ver a última entrevista de Lula, ao afirmar que 2013 foi uma manifestação orquestrada pela CIA. Uma conclusão errada e cômoda para um partido que passou a ter dificuldades em fazer oposição.
Estamos em busca de alternativas e a força das ruas tem nos mostrado que a solução não virá de cima. Os movimentos das ruas nos apontam para um caminho da auto-organização dos grupos sociais com autonomia, sem saídas partidárias ou populistas.
Se as ruas ainda não apontam soluções políticas imediatas diante da crise, pelo menos nos fazem acreditar nas possibilidades, nos alentam sobre as armadilhas institucionais, nos faz pensar e recuperar a nossa vontade de agir, e agir coletivamente.
A rua é mais do que um lugar de luta, no meu caso, é a possibilidade de recuperar aquele ânimo adolescente que está adormecido, mas vivo, em algum lugar do meu corpo.

Mariângela Nascimento
Coordenadora do Gira
Universidade Federal da Bahia

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